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Não há resposta simples para solucionar a crise – Parte 2/3

Matéria publicada no Instituto Millenium, de autoria de Fernando Raphael.

(continuação da matéria iniciada ontem, parte 1/3)

ESTRUTURA DOS PREÇOS

O Presidente do FED não agiu errado de acordo com nenhuma das teorias. A questão toda é outra. A questão é a composição dos índices usados para medir a atividade econômica. Quando você avalia apenas o índice de preços, como é feito hoje no mundo todo, mas ignora o “quantum”, isto é, a quantidade de bens negociados, acaba-se tendo uma impressão errada sobre o que é inflação ou deflação e o que é uma mudança estrutural nos preços, tanto para cima como para baixo.

Vou dar um exemplo de uma possível mudança estrutural nos preços montando um cenário para a indústria automobilística. A tendência nos últimos 50 anos no mercado de automóveis é que os carros mais novos sejam mais caros que os carros da “geração” anterior, porque a cada nova geração de veículos, mais tecnologia é acrescentada ao produto. Os fabricantes de automóveis, olhando a renda dos trabalhadores, que vem crescendo de forma praticamente ininterrupta, imaginam que a cada década, mais ou menos, os consumidores irão desejar veículos maiores, mais seguros, mais potentes e mais sofisticados.

Com isso, a tendência na indústria automobilística é que o preço dos veículos aumente. Isto pode forçar o índice de preços para cima, fazendo com que através deste produto haja uma leve força atuando para a inflação dos preços. Mas esta é uma mudança estrutural. Quando um novo fabricante, como a indiana Tata, por exemplo, apresenta um novo produto no mercado, de grande volume, com preços muito baixos, ele pode jogar o índice de preços para baixo.

Isto porque a expectativa deste fabricante é vender uma quantidade muito superior de automóveis por um preço muito mais baixo que a média de mercado. Um regulador da taxa de juros desavisado poderia ver nesta mudança na tendência dos preços um risco de deflação, e com isto baixar a taxa de juros, o que facilitaria, teoricamente, a volta de um crescimento no índice de preços. Da mesma forma, este carro de grande volume poderia aumentar o preço de determinados insumos da indústria, como aço, por exemplo, o que poderia ser interpretado como ameaça de inflação. A decisão, portanto, poderia ser tomada de forma equivocada se não for considerada a mudança estrutural dos preços.

O caso do petróleo e das commodities ilustra bem isto. Há uma mudança no índice de preços deles causada, sobretudo pelo aumento do consumo, isto é, dos “quanta” negociados, e não por excesso de crédito. O consumo cresceu mais rapidamente que a oferta de alimentos e de petróleo. Isto levou o governo de vários países do “terceiro mundo” a aumentar a taxa de juros no começo de 2008 para conter a inflação. Só que não havia inflação no horizonte, já que os preços estavam mudando por razões estruturais. O aumento nos preços ocorria em razão de uma alteração do mercado.

Nos EUA o aumento destes preços estava levando as pessoas a “quebrarem”, porque seus gastos cresciam mais rápido que suas rendas. Esta tendência havia sido contrabalanceada pela queda no preço de bens industrializados, causado pelas importações de países asiáticos, principalmente. Na União Européia, a queda relativa da renda estava sendo compensada pela queda nos custos de produção, devido a incorporação de países de salário mais baixo no bloco europeu. Quando o consumo destes novos mercados começou a crescer, ele forçou uma mudança na estrutura dos preços de bens básicos.

A renda nos países “centrais”, para usar um termo comum que descreve o conjunto de economias da OCDE, estava em partes baseada em rendimentos monetários provenientes de operações no mercado de futuro, isto é, nas expectativas em relação ao comportamento futuro dos preços. Era assim com os imóveis, e também com os vários outros produtos no mercado. Esta previsão em relação ao futuro mudou pouco; todo mundo acha que o mundo irá continuar crescendo nos próximos anos. Mas o preço dos imóveis não acompanhou esta tendência, porque seu preço subiu menos do que era esperado. E esta “deflação” no preço dos imóveis, e de vários outros bens ligados a indústria de construção (minérios, madeira, aço, máquinas, petróleo, etc.) acabou por levar a uma quebradeira generalizada dos devedores, que por sua vez afetou numa extensão muito grande a estabilidade financeira dos credores (bancos).

A macroeconomia de hoje é falha e as teorias “liberais” ou “keynesianas” clássicas e neoclássicas são insuficientes para uma adequada regulação do mercado de moeda porque há um descolamento da teoria em relação à realidade micro-econômica das empresas. No caso dos mecanismos de avaliação dos índices de preço, que são a base da macroeconomia keynesiana, há problemas na formação destes índices, inclusive nos cálculos de produto.

Já nas teorias como a da escola austríaca, há uma falta de mecanismos para avaliação de questões microeconômicas, como a avaliação de risco. Quando se modificam as normas contábeis, a percepção ao risco, aos lucros e aos prejuízos muda. Ninguém dentre os liberais austríacos está atento às mudanças nas regras de contabilidade que estão ocorrendo no mundo todo. Isto tem um impacto direto na microeconomia das empresas.

Um componente muito importante da crise, portanto, é a questão da avaliação incorreta dos riscos, sobretudo por parte dos bancos. Esta avaliação pode ter sido propositalmente incorreta, isto é, mesmo sabendo do risco de seus empréstimos, os bancos preferiram apostar na todas as fichas na alta, esperando um socorro dos governos na baixa, mas isto é uma hipótese apenas. Com os riscos de deflação causada, sobretudo, pela eminente queda nos preços, era visível que a atitude do FED seria reduzir taxas de juro para estimular o consumo (e alta nos preços). Mas isto tem um efeito (negativo) ainda maior na rentabilidade dos bancos.

Pode-se também argumentar que o FED está utilizando-se de instrumentos keynesianos, basicamente a expansão da moeda, para estimular a demanda, aquecer o mercado e a partir daí retomar o crescimento. Isto explicaria as baixas taxas de juro. Mas Keynes sugeria estes mecanismos em contextos inflacionários, para dissipar (ou na opinião de seus detratores prolongar) a bolha que gerara a crise. No caso atual, a bolha já estourou e a objetivo é evitar a deflação e o aprofundamento da crise.

Neste ponto a estrutura dos preços é importante. Porque apesar da crise acentuada, o preço dos alimentos se modificou pouco. E o preço do petróleo caiu muito em relação aos praticados no ano passado, mas ainda estão muito acima dos patamares de cinco anos atrás. Isto é, o preço de várias destas commodities não irá deflacionar-se muito em relação aos preços anteriores. A bolha durou muito menos tempo do que dizem (alguns falam que ela é a mesma desde 1995). O preço dos imóveis nos EUA pode estar baixo agora, mas o déficit habitacional por lá ainda é grande, e está concentrado nas regiões onde há mais casas. Portanto, a uma expectativa de reativação do ciclo de crescimento num prazo não muito longo. A crise irá servir, principalmente, para reposicionar os imóveis no mercado. Casas grandes em subúrbios distantes talvez continuem se desvalorizando, por causa do preço crescente da energia. A crise, de um modo geral, apenas acelerou as mudanças.

Confira amanhã a última parte desta matéria.

Por Leandro Callegari Coelho

Leandro C. Coelho, Ph.D., é Professor de Logística e Gestão da Cadeia de Suprimentos na Université Laval, Québec, Canadá.

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